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SOBRE A FONTE E A CONSTRUÇÃO DO
SABER
* Salete Cardozo Cochinsky
Trabalho apresentado no I Encontro de Psicopedagogia e Psicanálise das aprendizagens ocorrido na Universidade do Vale do Rio dos Sinos -UNISINOS em 1997.
O
conceito de aprendizagem é sustentado através dos referenciais
técnicos/didáticos oriundos da produção científica que trata sobre aquisição e
construção do conhecimento como processo de evolução cognitiva e intelectual.
Desta forma, o saber é situado a partir
da correlação aprendiz-ensinante, onde o processo se faz notar na estrutura
psíquica.
Neste sentido, o
psiquismo é concebido como uma estrutura cuja função para o processo de
aprendizagem é reter e elaborar as informações de forma que tenham um efeito
que extrapola o aprendente, integrando-os em uma estrutura mais ampla, que é o
social, pela aplicabilidade do mesmo. Um professor, um engenheiro, um advogado
têm antes seu tempo de aprendiz, para posteriormente ocupar a posição de
ensinante. Assim é plenamente exitoso o sistema escolar ou de ensino.
Veja-se nos manuais
técnicos/didáticos, que tratam sobre a estrutura do psiquismo, uma relação de
conceitos que definem mecanismos específicos que constituem o indivíduo, e pelo
qual o mesmo é tomado em seu meio, familiar, escolar, social. Aí encontramos
para além de uma localização topográfica do sistema nervoso (físico, químico,
orgânico), conceituações que abordam esta constituição em articulação com um
sistema emocional (um sistema dinâmico que inclui as famosas funções de ego).
Ao envolver-me com as
questões de aprendizagem, ensino e/ou transmissão a partir da leitura e práxis psicanalítica,
proponho examiná-las a partir de um outro recorte. Recorte que nos remete a
pensar sobre um projeto que, enquanto desejo, é gênese e ação patente sobre a
estruturação disso que está conceituado como inconsciente. Daí considera-se a
condição estrutural, a partir do registro simbólico, real e imaginário, implica
o reconhecimento de que a essência do sujeito só pode visualizá-la a partir de
um corpo que é portador deste aparato, onde o biológico, físico-orgânico e
químico singularizam-se enquanto sujeitos na mediação com a cultura. Temos
então cadeias e mecanismos que já não podem mais ser relegados ao olhar e à
escuta de um saber específico, ou seja: de uma disciplina.
Assim como constatamos
que a evolução da ciência e da tecnologia tem contribuído para a produção de conhecimento quanto a sua
precisão (decifrando estruturas, funções e funcionamentos dos aparatos e
composições físico-orgânicos, o que promove o advento da especialidade, o saber
disciplinar), temos constatado também a contribuição da psicanálise, que em
decorrência de seu objeto de investigação ser o “objeto causa do desejo”, e portanto sua constituição ser
inespecífica e/ou transespecífica, promove e reintegra o saber e o conhecimento
ao seu lugar de origem.
Inicialmente, ao propor-me a fazer parte deste
evento, apresentando uma produção como tema livre, pensei em trazer para
discussão recortes de situações com as quais em minha práxis tenho me
defrontado, tais como:
ð O entendimento dos setores administrativos
das instituições que se propõem a educação e ensino é que o técnico está para
amparar e garantir as medidas administrativas;
ð Bem mais grave do que isso, um percentual
bastante elevado destes chamados técnicos de saúde, (por razões evidenciadas
por quem participa dos encontros destes profissionais, mas que não vale a pena citar) corrobora, e
mais que isso, reforça tal entendimento;
ð Estamos sendo testemunhas do efeito do
conflito do adulto, cuja conseqüência manifesta-se pelas dificuldades de ser
contingente nos lugares que ocupam diante de uma criança e/ou
aprendiz.
Mas ao refletir sobre a
forma de trazer isso como dados de uma realidade atual, decidi por trazer uma
construção teórica que me foi possível a partir de meu exercício clínico,
somado a 22 anos de envolvimento em instituições, que objetivam a promoção e/ou
isso que se pode ali definir como execução de uma proposta escolar.
Desejo e saber como tema
deste I Encontro de Psicopedagogia e Psicanálise das Aprendizagens propicia um
momento fértil para reflexão dos que estão
interessados em avançar em suas pesquisas e discussões a partir destas duas especificidades, que são
vias, canais, por onde os aqui presentes buscam a re-apropiação
daquilo com que estão comprometidos.
Todos que se encontram
nesta discussão já têm uma trajetória, um percurso de tempos, lugares e
condições que os diferenciam entre si e mais evidentemente do infante que vai para a Escola para
introduzir-se e apreender o, e através do,
sistema formal de aquisição de conhecimento.
Com isso proponho-me a
apontar para uma linha divisória entre conhecimento
e saber, enquanto conceito com os quais articulamos
nossas teorias e práticas.
Os conceitos “cultura” e “cultural” são referidos no social, através dos meios de
comunicação, como eventos de promoção de universalização do conhecimento. Ora,
na universalidade o que está em questão é o saber, que articulado com o cognitivo,
transforma-se em conhecimento.
É na teoria psicanalítica
, no que concerne sua especificidade que
se encontra a excelência de condições para exame da universalidade
cultural. E aí o
saber, em dialética com a verdade (que só pode ser
concebida no sujeito enquanto ser
desejante), pode desvelar a primazia da linguagem como mediadora entre o saber
e o conhecimento. Quanto ao que podemos situar como propriedade disso, no que
concerne ao saber e à verdade, Alain Badiou, como filósofo, contribui com a
formulação:
“Na psicanálise, o que não se pode saber termina por ser
o saber de uma verdade. Forçosamente, o que não é sabido conscientemente é
sabido de outra forma.”(Badiou, 1994, p 27)
Isso
quer dizer: sei que aqui há algo que não sei. Portanto, há uma verdade: o não
saber sobre este algo, (que pode ser: por que gosto ou não gosto de ir à
escola), remete-nos a pensar na falta, ou vazio, como uma estrutura que se
constitui a partir deste outro, um lugar
preenchido.
Freud, com a formulação
do conceito “Inconsciente”, funda a psicanálise e sua consistência se efetiva e
ganha reconhecimento para além do meio médico, especialmente da neurologia e
psiquiatria, a partir dos escritos metapsicológicos que apontam e situam o
status do inconsciente através das formas de linguagem, que em sua manifestação
singular reafirma sempre a universalidade.
O desafio inicial de Freud, a partir das
pesquisas das afecções nervosas junto a neurologia e psiquiatria, pelo que
constatamos na literatura psicanalítica, já apontava seu esforço para chamar
atenção, inicialmente dos envolvidos com as ciências médicas, para outros fatores no desenvolvimento de doenças,
a saber, os fatores inconscientes. Partindo da doença mental orgânica, por já
ser situada e pelo que havia de reconhecimento da fisiologia e funcionalidade
do sistema nervoso, chegou à doença psíquica, da alma, pelo que havia de
estranho e singular nas formas de manifestações. Com isso, marca-se então a
queda da hegemonia das ciências naturais e positivas, pois na sintomatologias
manifestas através da linguagem , expressas em suas singularidades, encontram-se o indiscutível fato de que o
sujeito se constitui inscrevendo-se a partir de signos e mitos contingentes no
coletivo e regulados pela cultura.
Lacan, privilegiado com o
avanço das ciências e seu contexto, segue adiante, e tendo em conta seu próprio
estilo, reafirma a consistência da teoria freudiana como um evento não só do
psicopatológico e da marginalidade científica, mas também como um estatuto cuja
lógica se encontra para além dos sistemas simbólico, real e imaginário como
estruturante do sujeito cultural, na
articulação dos mesmos, e formula: o campo do sujeito é o campo
do outro. Para esclarecer ainda mais ressalto sua
formulação:
“O mundo do símbolo,
cujo próprio fundamento é o fenômeno da
instância repetitiva, é alienante para o sujeito ou, melhor, ele é causa de o sujeito realizar-se sempre alhures
e de sua verdade estar sempre velada em algum lugar. O eu está na interseção de
um e de outro.”(Lacan, 1985, p. 264)
Neste sentido, a
aprendizagem e tudo o que diz respeito ao advir do humano são colocados sob um
paradigma distinto daqueles que sustentam as ciências que postulam a aquisição
do conhecimento relativizados à natureza de uma ordem onde o desejo fica excluído, este que é estruturado no campo do outro.
O que escutamos e lemos ainda nesta semana nos
meios de comunicação? Um só título de notícia como exemplo: RS sai
à caça de 1.500 cérebros (Correio do Povo, 02/04/97, p 8). O que isso nos
indica é o fantástico privilégio de que o positivismo científico goza, o que inclui a mídia que dá à ciência um
estatuto abstrato e alienígena, porque
incompreensível pela própria razão
que a fundamenta. Uma suposição inevitável, considerando estes fatos, é
que estamos diante de um acirramento das defesas humanas quanto a sua condição
de ser sujeito, pela alienação ao desejo, que o transforma em ser assujeitado.
O que a modernidade impõe, simultaneamente
em nível de conhecimento e saber, através das descobertas e inventos cada vez
mais precisos, é a transparência da gênese da evolução cultural e civilizatória
humana (e tudo o que dela decorre), antes só aceita fora da esfera da lógica
racional, da “con-s-ciencia”, a saber: a a-temporalidade e a a-espacialidade
características dos processos inconscientes. Sobre o que está presente no
conceito de modernidade (mais que isso, o que a caracteriza), diz respeito às conseqüências da
tecnologia, Giddens aponta:
“(...) arranca crescentemente o
espaço do tempo, fomentando relações entre outros “ausentes”, localmente distante de qualquer situação dada ou interação face a face. Em
condições de modernidade, o lugar se torna cada vez mais fantasmagórico:
isto é, os locais são completamente penetrados e moldados em termos de
influências sociais bem distantes deles. O que estrutura o local não é
simplesmente o que está presente na cena; “a forma visível”
do local oculta as relações distanciadas que determinam sua natureza.(Giddens,
1991, p.27)
Refere Freud sobre o sentimento do adulto no que diz
respeito a situar as fontes de suas sensações:
“Uma reflexão mais apurada nos diz que o sentimento do ego adulto deve
ter passado por um processo de desenvolvimento, que, se não demonstrado pode
ser construído com um razoável grau de probabilidade. Uma criança récem-nascida
ainda não distingue seu ego do mundo externo como fonte de sensações que fluem
sobre ela.”(...) Ela deve ficar fortemente impressionada pelo fato de certas
fontes de excitação, que posteriormente identifica como sendo os seus próprios
órgãos corporais, poderem provê-la de sensações a qualquer momento, ao passo
que, de tempos em tempos, outras fontes lhe fogem (....)” (Freud,(1929 [1930],
p 3019)
O propósito desta citação do texto de Freud
é propor um releitura do mesmo tendo presente o acelerado processo do que
constitui e se pode tomar como conhecimento. O processo civilizatório é conseqüência
da interação e seus fins, ainda conforme Freud:
“(...) a soma integral
das realizações e regulamentos que distinguem nossas vidas de nossos
antepassados animais e que servem a dois intuitos, a saber: o de proteger o
homem contra a natureza e o de ajustar os seus relacionamentos mútuos.
(Freud,(1929[1930]) p 3033)
A pertinência desta chamada a Freud não se
refere aos conceitos, mas sim à consistência de seu entendimento da gênese da
evolução cultural humana, o que constatamos legitimado pela própria história.
“Proteção do homem contra a natureza?”. Da
necessidade de criar formas de abrigar-se contra predadores ou do que ameaçava
a vida, como temperaturas e aquisição de alimentos, ao desenvolvimento do
armamento bélico, espionagens via satélites, há uma grande diferença. Do que o
homem atual quer defender-se através da clonagem? Se é do imperfeito e/ou
improdutivo, qual é o parâmetro? De cérebros que não chegam ao doutorado, ou do
doutor que detém conhecimento e um possível conhecimento sobre este, e o poder
que isso lhe confere? Na cultura saber é
poder.
Por que o ser humano sabe
necessitar ajustar seus relacionamentos mútuos? O que tudo isso nos
confirma é que desejo e saber estão um para o outro assim por isso substratos
da apropriação do conhecimento. Para sua
sobrevivência ou para sua autopunição, como se constata em casos clínicos,
ajustam-se as normas, morais, religiosas, científicas. Temos aí uma denúncia:
sabe-se que nisso tudo a própria ciência anuncia, mas não mostra sua face oculta, obscura. E mais que isso, que
aí deliberadamente se produz o
ocultismo, o obscurantismo.
Mas entre o ajustamento e o assujeitamento,
a partir de uma leitura psicanalítica dos conceitos através do que os mesmos
definem, há um longo caminho a percorrer. O ajustamento é antes da ordem da
necessidade, cuja saída, ou entrada do sujeito, é determinada na posição
estruturada de ego ideal.
O conceito assujeitamento, proferido na
linguagem cotidiana e fora da situação de estudo e/ou interlocução, assusta e desperta angústia porque remete a
noção de subjugação e aprisionamento. Quando em situações de interlocução ou
análise, não isenta de sustos e angústia porque em pleno exercício de ocupar
este lugar, viabiliza-se a alteridade - saber-se assujeitado ao desejo é a via
de instauração e formação do inconsciente. Acrescento que devemos ter presente
que a priori há um saber inconsciente sobre a função destes grilhões. A linguagem é a prova, a palavra proferida a
quem em condições de escuta proporciona o retorno deste dramático à cultura.
Sobre o saber e o conhecimento o que podemos
formular como verdades de sua
instituição, é que o processo dialético não elimina totalmente o objeto positivo na forma
absoluta do conceito - e nisso, a virtual linha divisória é apenas um sinal da
ambigüidade que sempre se põe para o sujeito dos mesmos.
Slavoj, como psicanalista, refere que o
necessário surge do contingente. Com isso, esclarece que a performatividade (de performance mesmo)
se encontra na retroatividade. Faz uma analogia esclarecedora:
“(...) Este grão, é claro, é o do paradoxo
do grão-a-mais ou do cabelo-a-menos: qual é o grão que se faz monte? Qual é o
cabelo que se arranca para se ficar calvo? A única resposta possível comporta uma inversão da “ certeza antecipada”
lacaniana: o fato de ter diante de si um monte de areia só pode ser constatado
tarde demais, na posterioridade.”(Zizek, 1988, p.30)
Esclarece então, que o conhecimento em
dialética com o saber, como objeto da ciência caracteriza uma performatividade sustentada na contingência, esta que cultural
e contextual. Mas apoiado em seu saber e conhecimento sobre o status da
estrutura do sujeito, segue:
“Estamos lidando com
determinações simbólicas, e elas nunca se deixam reduzir à descrição dos dados positivos, das
posterioridades positivas; sempre implicam uma certa distância em relação à
realidade positiva. Uma determinação simbólica nunca coincide com a realidade
na sincronia pura: podemos apenas constatar na posterioridade, que o estado de
coisas em questão já estava dado antes. O paradoxo, é claro, está em que este
“antes”, este efeito de “já dado” , resulta retroativamente da própria
determinação simbólica.”(Zizek, 1988, p. 30)
Retornando
ao início desta exposição onde coloco a constatação dos efeitos do
conflito do adulto diante do lugar que deve ocupar junto à criança, reporto-me
ao que Dolto escreveu no prefácio dos
escritos de Mannoni, que compõem o livro “A Primeira Entrevista em Psicanálise”
referiu:
“São adultos seriamente
neuróticos tomados como mestres e exemplos que produzem a confusão ou a
organização enferma ou perversa na estrutura da criança em crescimento.”
(Dolto, apud Mannoni, 1981, p 15)
Não há como negar que são
os pactos dos adultos que vão constituir
e instituir a escola no discurso
social, como um lugar puramente de ação
instrumental.
Chamo atenção para dois fatos de suma
importância a serem considerados quando trata-se sobre aprendizagem: a) que a
ciência como “instituição” é cultural, e com relação a universalidade é contingente
e vice-versa; e b) que as instituições de ensino não ignoram o psiquismo porque
este como instância do ser humano é constituinte e objeto da ciência. Desta forma, a questão da
aprendizagem, tem seu inicio nas articulações do humano enquanto ser da
ciência e mediadas pela cultura que
inclui estas articulações e não ignora que a infância só é constatada a
posteriori, isto é: porquê há um “adulto”.
Se hoje estamos aqui, o
que mais podemos fazer além daquilo que uma criança faz ao ir para a escola, é
interrogarmo-nos em ato e em tempo sobre o lugar
e destino desta “decisão”.
Referências Bibliográficas:
1 - ANDRÉ, Serge. A impostura perversa. Rio
de Janeiro, J. Zahar, 1995.
2 - BADIOU, Alain. Para uma nova teoria do
sujeito. Rio de janeiro, Relume-Dumará, 1994.
3 -
BARTHES, Roland. Aula. São Paulo, Cultrix, 1977.
4
- FREUD, Sigmund. El malestar en la cultura. 1929-30 Obras
Completas 4.ed. Madrid, Biblioteca Nueva, 1991, v 3
5 - GIDDENS, Antony. Conseqüências da
modernidade. São Paulo, Unes, 1991.
6 - HAJCHMAN, John. Eros e verdade: Lacan,
Focault e a questão da ética. Rio de Janeiro, Zahar, 1995,
7 - LACAN, Jaques. O seminário A ética da
psicanálise. 2. Ed. Rio de janeiro, J. Zahar, 1985.
8 - ......................... O seminário Os
quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro, J. Zahar, 1985,
9 - .......................... O seminário O eu na teoria de Freud e
na técnica da psicanálise. 3 ed. J. Zahar, 1985.
10 - MANNONI, Maud. A primeira entrevista em psicanálise. Rio de Janeiro, Campus, 1981.
11 - RICOEUR, Paul. Ideologia e utopia. Lisboa, Edições 70, 1986.
12 - STEIN, Conrad. O psicanalista e seu ofício.
São Paulo, Escuta, 1988.
13 - ZIZEK, Slavoj. O mais sublime dos histéricos
Hegel com Lacan. Rio de Janeiro, J. Zahar, 1988.
Porto
Alegre, 1997
*Salete
Cardozo Cochinsky - Psicóloga e Especialista em Teoria Psicanalitica
Trabalho apresentado no I Encontro de Psicopedagogia e Psicanálise das aprendizagens ocorrido na Universidade do Vale do Rio dos Sinos -UNISINOS em 1997.